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ARTIGO – O Funeral da Lei 13.786/2018

Escrito por: Ana Cristina Dias – advogada

Quando a Lei nº 13.786, de 27 de dezembro de 2018, foi publicada, o mercado imobiliário respirou aliviado. Após anos assolado por uma enxurrada de distratos, incorporadoras e loteadoras enxergaram naquela norma a possibilidade de equilíbrio. Entre 2014 e 2018, os pedidos de rescisão alcançavam a alarmante taxa de 30% das vendas realizadas. Na ausência de lei específica, o Judiciário, amparado pela Súmula 543 do STJ, determinava devoluções imediatas, corrigidas, com retenções limitadas a 10% ou 20%.

O efeito foi devastador: empresas obrigadas a restituir valores substanciais aos adquirentes desistentes ao mesmo tempo em que precisavam concluir obras, custear insumos e cumprir prazos de entrega com os demais compradores. O caixa era estrangulado, comprometendo a própria sobrevivência do setor.

Foi nesse cenário que surgiu a chamada “Lei do Distrato”, com o propósito de restabelecer a segurança jurídica e proteger de forma equilibrada tanto o consumidor quanto o empreendedor.

O cenário antes e depois da Lei

Antes da Lei 13.786/2018, a jurisprudência fixada pela Súmula 543 do STJ regia a matéria, prevendo restituição imediata dos valores, integral se a culpa fosse do vendedor, parcial se atribuída ao comprador. Faltava, porém, precisão normativa sobre percentuais de retenção, forma e prazo de devolução.

Com a nova lei, inaugurou-se disciplina clara:

  • Percentuais de retenção definidos (diferenciando incorporação e loteamento, patrimônio de afetação ou não).
  • Parcelamento possível, a depender do estágio da obra.
  • Previsão de prazo de tolerância para atraso de construtoras (até 180 dias).
  • Detalhamento de encargos e hipóteses de restituição.

O legislador demonstrou preocupação inequívoca com o equilíbrio contratual, preservando o fluxo financeiro que viabiliza a conclusão das obras, ao mesmo tempo em que assegurava a devolução ao consumidor desistente.

A resistência judicial e o retorno à Súmula 543

Apesar da vigência da Lei, o que se observou na prática foi a resistência dos tribunais em aplicá-la. Muitos julgadores, alegando excesso de severidade da norma em relação ao consumidor, preferiram manter a aplicação da Súmula 543, mesmo reconhecendo que a lei praticamente a revogara.

Esse fenômeno – de juízes simplesmente ignorarem o texto legislativo – já era suficiente para apontar sinais de um “esvaziamento” da lei. Mas o golpe decisivo viria em 2025.

O funeral da Lei: decisão da 3ª Turma do STJ (setembro/2025).No julgamento de recurso especial em setembro de 2025, a 3ª Turma do STJ firmou que, nas relações de consumo, o Código de Defesa do Consumidor deve prevalecer sobre a Lei do Distrato. A relatora, ministra Nancy Andrighi, acompanhada pela ministra Daniela Teixeira e pelo ministro Humberto Martins, concluiu que os descontos previstos no art. 32-A da Lei nº 6.766/79 (com redação dada pela Lei 13.786/2018) devem observar o limite de 25% dos valores pagos pelo consumidor.

Em outras palavras, embora a lei autorize retenções variadas – cláusula penal, despesas administrativas, taxa de fruição, tributos, comissão de corretagem – a soma delas não pode superar 25% do que foi efetivamente pago, sempre que houver relação de consumo.

A decisão afastou a incidência da taxa de fruição no caso concreto e, na prática, restabeleceu o padrão jurisprudencial anterior, esvaziando a aplicação da lei.

Houve divergência: os ministros Ricardo Villas Bôas Cueva e Moura Ribeiro defenderam a prevalência da Lei do Distrato, sustentando que considerá-la abusiva seria simplesmente ignorar o texto legislativo. Mas a maioria consagrou a prevalência do CDC, decretando – ainda que de forma não declarada – o “funeral” da Lei 13.786/2018.

A hierarquia das normas jurídicas. O episódio suscita reflexão fundamental: pode a jurisprudência, mesmo consolidada em súmula, sobrepor-se a uma lei federal vigente? A resposta clássica, aprendida nos primeiros anos da faculdade de Direito com a Pirâmide de Kelsen, é negativa.

A lei, enquanto fonte primária, prevalece sobre a jurisprudência, que é fonte secundária do Direito. Súmulas não possuem caráter vinculante, salvo aquelas editadas em controle concentrado ou previstas constitucionalmente.

Portanto, ignorar a lei em nome de súmula ou de interpretação judicial, é inverter a hierarquia normativa: coloca-se o Judiciário acima do Legislativo, enfraquecendo o Estado de Direito. A Lei 13.786/2018 não foi revogada pelo Congresso Nacional, não teve sua eficácia suspensa nem foi declarada inconstitucional. Todavia, foi sepultada pela resistência judicial e por decisões que a reputam “inaplicável” diante do CDC.

Conclusão

A Lei 13.786/2018 nasceu como promessa de equilíbrio entre compradores e incorporadores, capaz de devolver segurança a um mercado em crise. No entanto, em apenas sete anos, sua aplicação foi progressivamente minada por interpretações judiciais que preferiram a jurisprudência anterior.

A decisão da 3ª Turma do STJ, em setembro de 2025, simboliza o funeral da Lei do Distrato: embora vigente, sua eficácia foi neutralizada pela prevalência atribuída ao CDC e pela reinterpretação judicial que impôs o limite de 25% em todas as hipóteses de relação de consumo.

Resta, ao mercado e à sociedade, conviver com os efeitos da insegurança jurídica: de um lado, consumidores amparados; de outro, incorporadores e investidores expostos à fragilidade de um sistema que permite que uma lei federal seja esvaziada não pelo legislador, mas por quem deveria aplicá-la.

Eis, portanto, o funeral da Lei do Distrato — uma morte sem lápide, mas com efeitos profundos para o mercado imobiliário e para a segurança jurídica do país.

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